terça-feira, 11 de abril de 2023

“Morning Glory”: A carta de amor de Ryan Adams aos Oasis e à música britânica

"Where were you while we were getting high?"



Ryan Adams chegou na semana passada ao Reino Unido para uma tour britânica, a primeira desde o escândalo que o afastou dos palcos em 2019 (eu tinha bilhete para o ver no Royal Albert Hall, mas a digressão foi cancelada) e, para celebrar a ocasião, lançou gratuitamente no seu site um álbum de covers do icónico “(What’s The Story) Morning Glory?” dos Oasis. Reimaginar o álbum mais bem sucedido dos Oasis é um exercício arriscado. Quase 30 anos depois do seu lançamento, “Morning Glory” continua mais relevante que nunca no Reino Unido, ou não fosse o terceiro álbum de originais mais vendido de sempre neste país, com 5 milhões de cópias vendidas (apenas atrás de The Beatles e Adele), e detentor do Brit Award para melhor disco britânico entre 1980 e 2010. É impossível escapar à música dos Oasis em Londres, seja nos pubs, ou até no metro, onde é comum ver adolescentes cantarem “Wonderwall” e “Don’t Look back In Anger”, ambos deste disco. Para mim, fã de Ryan Adams e dos Oasis, abordei com enorme interesse, mas também com igual precaução, um disco de versões de um dos álbuns da minha vida.

A minha preocupação era escusada. Ryan Adams despiu as canções ao mínimo essencial e com isso revelou (se dúvidas houvesse) que a escrita de Noel Gallagher nesta fase era absolutamente imbatível. Desconstruir todo o muro de guitarras dos Oasis até à pureza acústica, expor as melodias a nu, e mesmo assim ficar com uma paisagem com esta beleza, só prova que as canções são mesmo fantásticas. Ryan já tinha feito um exercício semelhante quando gravou na íntegra um álbum de covers de “1989”, segundo o próprio, como se fossem gravadas pelos The Smiths. Também aí, o resultado foi expor a nu a genialidade da escrita de Taylor Swift.

Com este disco, Ryan Adams gravou uma carta de amor à música do Reino Unido, mais especificamente à música de Manchester. A sua versão, mais sucintamente baptizada de “Morning Glory”, é um cesto de Easter eggs da sónica britânica, prontos a serem descobertos pelos vossos ouvidos. Podemos, por exemplo, ouvir Joy Division em “Hello”. “She’s Electric”, por outro lado, foi transformado num híbrido transcendental de “Sheila Take A Bow” dos The Smiths (a sério, ouçam por vossa conta, e digam-me se não é uma fusão genial). “Morning Glory”, o tema-título, soa a um outtake das sessões de “Standing On the Shoulder Of Giants”, fechando o ciclo de influências mancunianas.

Talvez o tema que mais esperava ouvir neste disco fosse “Hey Now!”, de longe a canção mais underrated deste disco, e quiçá dos Oasis. Ryan não desapontou. Mais uma vez, despindo-a ao mínimo, revelou-se a fundação maravilhosa desta música. Tal como na voz de Liam, as palavras “What am I gonna do while I’m looking at you, you’re standing ignoring me?” batem forte. Continua a ser uma das linhas mais poderosas de toda a lírica de Noel.

E por falar em lírica poderosa, que dizer do final com “Champagne Supernova”, transformado num semi-acústico low-fi gravado numa boombox, qual gravação retirada de “Nebraska” de Bruce Springsteen (talvez a maior influência de Ryan Adams) — “How many special people change, how many lives are living strange?”.

A versão de “Cast No Shadow” ganha um novo sentido ao ser dissecada e adornada com uma secção de cordas. Originalmente uma homenagem a Richard Ashcroft, torna-se numa balada sobre um outcast perdido da sociedade. Aparecem também aqui os sintetizadores de Springsteen em “Tunnel Of Love”, que Ryan Adams usa amiúde nos seus álbuns de originais, e que aqui dão corpo às canções, como no caso de “Don’t Look Back In Anger”. Ryan já tinha gravado um cover de “Wonderwall” em 2004, para o seu álbum “Love Is Hell”, mas aqui o tema aparece numa versão nova. Os hits, confesso, são os temas menos interessantes deste disco, talvez por estarem tão cravados na nossa memória. Ou então sou eu que já ouvi “Wonderwall” vezes que cheguem na minha vida.

Ryan Adams não se limitou a gravar o álbum original, e incluiu também uma selecção de alguns Lados B chave dos singles desta época, incluindo “Talk Tonight”, “Acquiesce”, “Rockin’ Chair”, “Headshrinker”. Curiosamente, estes dois últimos estão no lote das versões mais superlativas neste disco, se não mesmo definitivas. “Headshrinker”, em particular, é um triunfo absoluto — um bulldozer punk na versão original, que aqui é desacelerado a um semi-acústico retirado de “The Dreams We Have As Children” que, arrisco dizer, é melhor que o original cantado por Liam Gallagher. Pronto, está dito.

A versão de Ryan Adams de “Morning Glory” é uma revelação. Este álbum, marco indelével na cultura popular britânica, só ficou a ganhar com esta reinterpretação, que expôs a nu a perenidade das melodias de Noel Gallagher. Não que houvesse dúvidas disso. É o disco que têm que ouvir esta semana, basta irem ao site de Ryan Adams. É de borla.


quinta-feira, 30 de março de 2023

Robert Smith foi a cura contra a doença chamada Ticketmaster

A bilheteira meteu-se com o gótico errado, por isso o vocalista dos The Cure obrigou o gigante a devolver o dinheiro das taxas aos compradores


Estás perdoado Robert,  pelo pecado de teres lançado ao mundo "Friday I’m In Love". Quando a digressão americana dos The Cure foi anunciada, Robert Smith prometeu manter os preços dos bilhetes baixos, de modo a não fechar a porta a ninguém aos seus espectáculos. Esta prática, louvável por princípio, faz ainda mais sentido agora que os custos de vida dispararam para toda a gente. E é ainda mais meritória, numa altura em que os artistas de nomeada, alguns deles supostamente os representantes da classe trabalhadora (refiro-me a Bruce Springsteen, obviamente), decidem explorar os seus fãs com preços pornográficos.

Os bilhetes para os The Cure foram postos à venda com preços na ordem dos 20 dólares (18,5 euros) — um valor que nos dias de hoje só se paga para ver bandas em início de carreira, e nunca uma banda lendária como os The Cure. Só que os fãs começaram a queixar-se no Twitter que, em cima dos 20$ do bilhete, tinham: uma taxa de serviço de 11.65 dólares, uma taxa de espaço de 10 dólares e uma taxa de serviço de 5.50 dólares. Ou seja, para um bilhete de 20 dólares, os fãs estavam a pagar mais de 47 dólares, com 27 distribuídos em taxas. Em vez de se esconder por trás de um gabinete de relações públicas no alto do seu trono de marfim, Robert Smith prontificou-se a responder e foi lapidar: "estou tão enojado como todos vocês" com as taxas da Ticketmaster. Smith adiantou que ia indagar o gigante de bilhética americano e daria novidades, "assim que recebesse uma resposta minimamente coerente".

Eu ri-me. Lembro que nem a toda poderosa Taylor Swift conseguiu fazer nada para aliviar os seus fãs das taxas exploratórias da Ticketmaster, que factorizavam o preço dos seus bilhetes. As práticas da Ticketmaster têm roçado o obsceno na exploração do público, principalmente nos Estados Unidos. Longe vão os tempos de bilhetes acessíveis para espectáculos de grandes bandas, disso já sabíamos. Mas não contentes com os preços exploratórios na ordem dos 300 dólares para um bilhete geral de plateia, agora a Ticketmaster reserva-se no direito de aplicar várias taxas à sua discrição. Pensar que Robert Smith, um dinossauro ultrapassado da indústria musical (mais ainda quando comparado com Swift), ia conseguir atingir o porta-aviões da Ticketmaster, era um exercício risível. Só que não.

Aparentemente, a Ticketmaster meteu-se com o gótico errado. Sucede que Smith não é apenas um conhecido anti-social (recordem em baixo o brilhante momento em que ele desmanchou o entusiasmo exacerbado de uma apresentadora do Hall Of Fame, com uma resposta secamente britânica), ele é também um anti-bullshit. Perante a passividade de outros artistas que nos últimos anos têm permitido o gigante americano explorar o público (relembro, para meu grande desgosto, Bruce Springsteen), Smith decidiu tomar uma posição de força, e não descansou enquanto a Ticketmaster não devolveu parte das taxas aos fãs.

O resultado foi uma ação absolutamente inédita, em que a Ticketmaster foi obrigada a devolver 10 dólares a todos os compradores e 5 dólares aos compradores dos bilhetes mais caros. Robert Smith foi o herói improvável e a cura dessa doença chamada Ticketmaster. A minha esperança é que agora que sirva de exemplo para os seus pares.



sábado, 18 de março de 2023

Roger Waters deu uma masterclass do espectáculo rock — mas o declínio é evidente

 A primeira vez que Roger Waters atuou em Portugal foi em 2002, no (ainda) Pavilhão Atlântico, em virtude da digressão In The Flesh, que marcava o regresso do ex- Pink Floyd aos palcos da Europa continental, pela primeira vez desde 1984. Eu estava lá. Foi o primeiro grande concerto da minha vida, tinha eu 16 anos, e marcou a abertura de um ciclo que me levou a ver os Floyds a solo 22 vezes (Roger: 8, David: 10, Nick: 4) — escusado será dizer que sou fã. À saída do mesmo pavilhão no passado fim-de-semana, hoje Altice Arena, naquele que terá sido o último concerto de Waters em solo português, também eu senti que um ciclo se tinha fechado.

Foi bom ver o Roger uma última vez. O cenário 360º da This Is Not A Drill tour, instalado no meio do Atlântico (salvo seja), obrigava à mobilidade de Waters, que exibiu uma forma física invejável. A espaços, fez lembrar um Mick Jagger a correr de um lado para o outro do palco cruciforme — prova que, apesar da idade avançada, a cabeça e o corpo de Roger não param de trabalhar.

Ver os Floyd ao vivo para mim é como ir à missa. E tendo em conta que já fui à comunhão algumas vezes, posso dizer que se vai ver o David pelo clímax musical e o Roger pela apoteose do espectáculo. É o próprio Roger quem vos dirá, qual Jorge Jesus do Rock, que foi ele quem inventou o espectáculo Rock. Se inventou, ou não, pode ser discutível, o que não merece dúvidas é a sua capacidade para fazer os melhores espectáculos Rock que o mundo já assistiu, capacidade essa que se mantém intocável aos 79 anos. E no entanto, já não é a mesma coisa.

Eu sei, foi um grande concerto. Quem lá esteve pode atestar que sim. É o Roger Waters a tocar Pink Floyd, era difícil correr mal. Mas não é essa a questão. Este espectáculo da This Is Not A Drill tour — segundo Roger, a sua última digressão —, embora brilhante, mostra também sinais de cansaço, e de que já não há muito para onde ir. É preciso estabelecer a priori que não há comparação entre os shows saídos da cabeça do Roger e dos outros artistas Rock; é outro campeonato. Mas se numa escala global, o concerto foi um 8 ou um 9; na escala Roger Waters, foi um 5, ou um 6. As críticas que tenho lido, todas a tecerem loas ao génio criativo dos Pink Floyd, olvidam que estamos na presença do mestre. A exigência é maior com ele.

Comparando com a última apresentação de Waters no Atlântico em 2018, na digressão Us + Them, mais focada no álbum "Animals", este espetáculo ficou muitos furos abaixo, tanto em termos de show (lembram-se da Battersea Power Station no meio do pavilhão?), como em termos musicais. E se pusermos este show ao lado da sua obra prima — The Wall Live — que trouxe ao Atlântico em 2011, e foi o melhor espetáculo que eu já vi na minha vida, então perde por goleada em toda a linha. É de salutar que Roger queira fazer coisas novas, mas o declínio entre tournés é evidente.

Nesta digressão, Roger tentou não ir a jogo com os mesmos cavalos de corrida de sempre e apresentou algumas novidades na setlist, com destaque para "The Powers That Be" do (injustamente) famigerado "Radio KAOS" (1987) e "The Bravery Of Being Out Of Range" do brilhante "Amused To Death" (1992). Infelizmente, ambos os números foram abrandados, e perderam a combustão que os caracterizavam. Mas o público queria ouvir os hits e Roger anuiu, tocando trechos substanciais dos Big 4 — "The Dark Side Of The Moon", "Wish You Were Here", "Animals" e "The Wall", os quatro discos que perfazem os "anos dourados dos Pink Floyd", como ele diz agora —, incluindo os Lados B na íntegra de "Dark Side" e (quase) de "Wish You Were Here".

Musicalmente, estas sequências proporcionaram os pontos mais altos, e também alguns dos pontos mais baixos do show. No melhor, esteve "Shine On You Crazy Diamond Parts VI-VIII" (as melhores deste épico multi-parte), com uma fenomenal reprodução do solo de guitarra de Gilmour na slide guitar, por parte do ex-teclista de David, Jon Carin (também ele às avessas com David nos dias de hoje). No pior do show, esteve "Have A Cigar", um tema que se quer sujo, com guitarras cortantes; mas que aqui teve na frente da mistura os sintetizadores de Carin, afogando as guitarras numa paisagem tépida e monótona, sem chama e sem tesão.

Waters parece estar numa missão para reescrever a história dos Pink Floyd sem guitarras. Para além do já conhecido projecto de regravação de "Dark Side", Roger suprimiu David Gilmour de todas as fotos dos Pink Floyd que projetou. Mas o pior pecado foi ter começado o espectáculo com a versão vasectomizada de "Comfortably Numb", sem os solos de guitarra que marcavam o clímax do tema. Ao intervalo, na fila para o bar, não se falava noutra coisa — como é que Roger Waters fora capaz de um pecado destes?

"The Bar" que, curiosamente, é o nome do novo tema que Roger apresentou no Atlântico e é surpreendentemente comovente. O bar é um conceito que ele idealizou como o lugar onde podemos falar de tudo, com todos, de forma civilizada, "incluindo, e especialmente, da Ucrânia", referiu. Felizmente, Roger não elaborou o assunto da Ucrânia, para o bem de todos os presentes no pavilhão, incluindo, e especialmente, para ele — digo eu. Não creio que o público estivesse preparado para uma palestra sobre as virtudes e a bonomia de Putin.

À saída do pavilhão, todos concordaram que tinha sido um grande concerto, mas eu, que assisto ao declínio de Roger desde 2011, pergunto se não está na hora de revolucionar tudo, ou pendurar as botas. Será que foi a última tour do Roger? Para onde é que ele pode ir a partir daqui? 3D, realidade virtual, inteligência artificial? Quem sabe? Se alguém nos pode surpreender, é Roger Waters. Da cabeça deste génio louco, pode sair literalmente de tudo um pouco.

P.S.: Quando fui ao concerto de 2002 com o meu Pai, comprei uma t-shirt do Roger Waters que levei para a escola todos os dias até romper de uso. Na fila para o bar este fim-de-semana, vi um rapaz que parecia ter os mesmos 16 anos que eu tinha na altura, com a mesma t-shirt que eu comprei naquele dia. É o ciclo geracional dos Floyd — fechou-se um, passa-se o testemunho e outro se abre.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Óscares 2023: a obra-prima "Tár" e o roubo a Cate Blanchett

 A Academia está de parabéns. Foi uma bela cerimónia dos Óscares, desta vez sem bofetadas, que mais uma vez premiou a inclusão em Hollywood. “Everything, Everywhere, All At Once” (EEAAO) arrecadou 7 estatuetas, mas não é um filme para todos — uma salganhada que cruza a exploração de multiversos, com teletubbies e kung fu que, de certa forma, é um espelho para a fragmentação cultural da sociedade de hoje. No melhor, é original; no pior, é um nada que quer ser tudo. Aquilo que eu realmente não gostei foi ver a Michelle Yeoh desfraldar a bandeira da inclusão, como argumento para ganhar o Óscar de Melhor Atriz em detrimento de Cate Blanchett, pelo meio violando as regras dos Óscares. Foi feio.

Que não restem dúvidas — Michelle Yeoh é uma atriz fantástica em absoluto. É pena que tenha alavancado a relativização a uma minoria em Hollywood, para finalmente ganhar o Óscar que a sua carreira e este papel faziam por merecer. A estatueta está bem entregue à malaia, mas isso não significa que a melhor performance deste ano seja dela. Não foi. O Óscar de Melhor Atriz, este ano, merecia ser entregue a Cate Blanchett, pela sua performance avassaladora em "Tár". Foi o pior roubo nesta categoria, desde que Emily Watson não arrecadou a estatueta em 1997, pela sua performance em "Breaking The Waves" de Lars Von Trier.

Cate Blanchett interpreta Lydia Tár, um maestro — que recusa o uso do equivalente feminino, no caso português maestrina — brilhante em cima do púlpito, mas conflituada fora dele. Uma série de más decisões atiram a sua vida para uma espiral auto-destrutiva que, em última instância, põe em causa toda uma carreira irrepreensível e o seu próprio legado como artista. O guião de "Tár" é tão superlativo (perdeu também nesta categoria para EEAAO) que, no final dos primeiros 20 minutos, ficamos na dúvida se Lydia Tár existe mesmo. Para isso, muito contribui a performance da atriz. A personagem de Lydia Tár é tão densa, detalhada e rica em nuance e dicotomia, é uma absoluta masterclass de Cate Blanchett.

Acaba por ser uma ironia perversa que "Tár" tenha saído dos Óscares de mãos a abanar, quando o peso filosófico do filme é apoiado precisamente na subversão da sociedade atual, em que o mérito artístico é qualificado, ou validado, por critérios de identificação em género ou etnia. Não vou fazer spoilers, mas tenho que falar na cena chave no início do filme, em que Lydia, lésbica assumida que triunfou no competitivo mundo da música clássica, discute com um aluno seu, que sente o dever de se identificar como BIPOC pangénero (Googlem) e, como tal, recusa Bach pelo seu passado sexual "problemático". Lydia responde com uma linha pivotal, que resume na perfeição a cultura de cancelamento que vivemos, que confunde de forma recorrente a arte com o artista: “Não sei o que é que os hábitos do Bach na sua cama têm a ver com o seu mérito musical”.

O âmago do filme é precisamente esse. Lydia Tár é tão perfeita no púlpito e tão imperfeita pessoalmente, tal como Bach, Beethoven e tantos outros génios antes dela e no entanto, devido à época em que ela vive, é julgada sumariamente pelos seus erros, enquanto eles são lembrados pela sua glória. Não preciso de apontar o óbvio, em como Bach é apenas a ponta do icebergue. Se recusarmos Bach, temos que riscar Beethoven, Mozart, Lennon, Elvis, Miles, Brown, Page e todos os músicos que viveram vidas perversas. No fim, só ficamos com a Celine Dion, o Ed Sheeran e os Coldplay. É esse o mundo higienizado onde querem viver? Eu também não. Já escrevi aqui várias vezes e "Tár" deixa o mesmo recado — confiem sempre na arte, nunca no artista. "Tár" é a obra-prima secreta que têm que ver este ano.

segunda-feira, 6 de março de 2023

A música nova de Freddie Mercury criada pelo ChatGPT e o ovni que aterrou na música

Perguntei ao chatbot como seria um novo tema do vocalista dos Queen em 2023 e a ferramenta respondeu


Há sensivelmente dois anos, no aniversário da morte de Kurt Cobain, foi-nos apresentada uma nova música dos Nirvana criada por inteligência artificial (IA) — "Drowned In The Sun". Na altura, a reação generalizada foi que a música soava, na melhor das hipóteses, como uma cópia barata dos Nirvana. Era evidente que a IA não podia substituir o rasgo criativo de uma banda de humanos a criar a música. Dois anos volvidos, estamos face ao ChatGPT, uma ferramenta de IA que aterrou entre nós como um ovni cheio de aliens que não conseguimos ver, mas que vai revolucionar a forma como vivemos. Só ainda não sabemos exatamente como.

Quando olho para o ChatGPT e penso no impacto que pode ter, em particular nas profissões mais criativas, lembro-me da entrevista que David Bowie deu à BBC em 1999, onde descreveu o advento da internet como "uma forma de vida alienígena, que vai mudar completamente as nossas vidas". O jornalista reagiu à aparente hipérbole de Bowie com escárnio, duvidando do impacto que a world wide web, "apenas mais uma ferramenta", iria ter. E olhem para nós, hoje, 100 por cento dependentes da net para tudo — das redes sociais (que vieram para nos aproximar, mas em vez disso vilipendiaram a interação humana) até à realização das mais ínfimas tarefas como ir ao banco (quando foi a última vez que foram a um balcão?) — incluindo, obviamente, para ouvir música.

A repercussão da inteligência artificial será sentida mais rapidamente pelos jornalistas, escritores, tradutores, comediantes, guionistas e outros produtores de conteúdos e escrita criativa. A rapidez com que o ChatGPT produz um texto sobre qualquer tópico é aterradora. Pedi-lhe para escrever um rap sobre a NiT e dois segundos depois, voilá (podem ler o resultado no final do texto). Mais alarmante será o impacto na vida dos estudantes, professores e de todo o sistema de ensino. Vai ser preciso repensar a relação dos estudantes com a tecnologia, muito além da clássica proibição. É preciso perceber que, para o bem e para o mal, estas ferramentas vieram para ficar. E vão infiltrar-se em todos os campos, incluindo o da música.

A primeira pergunta que fiz ao ChatGPT foi "és capaz de compor canções?". A resposta foi negativa, mas ele (ela?) explicou porquê. A conversa foi em inglês, e a tradução é minha: "Sou um modelo linguístico de IA, posso gerar texto com base em padrões e regras que aprendi com a vasta quantidade de informação com que fui treinado. Isto inclui gerar texto que se parece com poemas e letras de músicas. Porém, compor uma canção requer não só texto, como também composição musical e arranjos, algo que vai além das minhas capacidades. Existem outras ferramentas de IA que podem ajudar a compôr músicas, mas ainda estão em fase inicial de desenvolvimento e podem não conseguir replicar de forma exata a criatividade e emoção que um humano imprime ao seu trabalho".

Notem que a resposta refere que "ainda não" compõe (o que veremos mais à frente que não é totalmente verdade), mas dá a entender que caminhamos para lá. Por outro lado, admite que escreve letras, pelo que lancei novo desafio ao ChatGPT: "Podes compor a letra para um novo tema do Freddie Mercury, se ele fosse vivo?". A resposta foi afirmativa. Segundo a ferramenta, a música que Freddie escreveria em 2023 chama-se, imaginem, "I'm Alive".

Versos: "In the darkness of the night, I feel the fire burn so bright / A passion deep inside, it's calling out to me / I hear the rhythm of the beat, it's moving to my feet / I close my eyes and I feel the sound, it's setting my heart free"

Refrão: "I'm alive, I'm alive, the music's taking me higher / I'm alive, I'm alive, the beat's my heart's desire / I'm alive, I'm alive, I feel the power of the sound / I'm alive, I'm alive, and I won't let it bring me down"

Verso 2: "I see the world around me, it's moving to the beat / People dancing to the sound it's like a symphony / I feel the energy in the air, it's like a wave of light / I'm caught up in the moment, it's like a dream in sight"

Refrão

Ponte: "The music's like a drug, it's running through my veins / I'm addicted to the beat, it's driving me insane / I'll never let it go, it's like a part of me / The music's in my soul and it's setting me free"

Refrão

Outro: I"'m alive, I'm alive, I'm alive..."

Notem como o bot percebe a estrutura e processa o espólio da lírica dos vocalista dos Queen e daí tenta produzir algo de original. O que fazer disto? Nada. A letra assemelha-se a um pastiche de uma música dos Queen, mas é demasiado explicativo, e desprovido da nuance que fez de Mercury, o Freddie Mercury. O desafio seguinte foi compor a lírica de um tema novo do John Lennon, mas o resultado foi ainda mais ridículo. Deixo-vos apenas o refrão:

"All we need is love, love is all we need / Let's come together, and plant the seed / All we need is love, love is all we need / Let's make a change, let's plant the seed"

Quem sabe alguma coisa acerca de Lennon e da sua relação com o passado, percebe que o cantor jamais escreveria algo a roçar a paródia como o que acabaram de ler. É evidente que esta ferramenta de inteligência artificial ainda está a dar os primeiros passos no que diz respeito a emular outros artistas. Mas a estrutura está toda lá. Para quem quer compor uma música, basta dar as instruções sobre a temática e o mood, e num espaço de segundos, tem metade do trabalho feito. Mais: se fizerem as perguntas certas, podem até ter todo o trabalho feito.

Já sabia que não fazia canções completas, mas se tinha a letra, só faltava a melodia. Voltei então à carga com a música do Freddie Mercury. Desta vez, perguntei se me podia escrever a melodia para uma canção do Freddie e, surpresa, o ChatGPT anuiu. Se tiverem um piano à mão, podem experimentar:

Verso 1: Gm7 — C7 — Fmaj7 — Bbmaj7

Refrão: Eb — Bb/D — Cm — Abmaj7

Ponte: Fm — Bbm — Ab — Eb/G — G7 — Cm — Fm — Bbm — Eb — Ab

Após uma nega inicial, conseguimos extrair a tentativa de uma música nova do Freddie Mercury em 2023. Mesmo sem a opção de reprodução final, dá para ter uma ideia do quão potente é esta ferramenta. Será suficiente para nos dar o próximo John, ou o próximo Freddie? Claro que não. Mas para o mainstream, chega e sobra. Não é que o Top 40 de hoje em dia não pareça que tenha sido produzido com recurso a inteligência artificial. O "mesmismo" já está instalado na corrente dominante há muitos anos, por isso a transição não será chocante.

Quem irá sentir mais a chegada da IA serão os DJs e produtores de reggaeton, que convergiram no tal mesmismo. As ferramentas estarão agora à disposição de ainda mais gente. Os próprios gigantes do mainstream Max Martin, Beyoncé, ou Taylor Swift, terão de estar mais atentos. Aliás, não será difícil prever que muitos destes compositores comecem a recorrer à IA para os auxiliar. Quanto às bandas de humanos, com instrumentos gravados ao vivo, serão cada vez mais uma coisa de nicho, tipo vinil na era do streaming.

O impacto da inteligência artificial na música será gigantesco, provavelmente só comparável à introdução dos sintetizadores nos anos 70. As funcionalidades do ChatGPT ainda são limitadas neste campo, mas outras ferramentas de IA se seguirão. O Top 40 estará ao alcance de todos.

P.S.: O rap da NiT, como prometido:

"Yeah, yeah, yo
Listen up, let me tell you 'bout a site
That's bringing Portuguese lifestyle to light
NiT, it's the name you gotta know
From food to fashion, they got the flow

They're serving up the latest news
On everything you gotta choose
From the hottest restaurants in town
To the newest trends that are going down

You wanna know what's good to eat?
NiT's got the complete deets
They'll tell you where to find the best food
And leave you in a Portuguese mood

Fashion, beauty, and lifestyle too
NiT knows what's new
They'll keep you in the loop
And have you feeling like a fashion troop

And if you're looking for some fun
NiT's got you on the run
They'll give you tips on where to go
And make sure your night's a show

So if you wanna keep it real
And live the Portuguese appeal
NiT's the site to see
They'll keep you up with the scene, guaranteed."

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

U1.5 em Las Vegas: os U2 entraram oficialmente na fase "Elvis gordo"

 São evidentes os paralelismos entre o crepúsculo da carreira de Elvis Presley e a rápida decadência artística que vemos nos U2.

Está escrito nos livros do Rock 'n' Roll: a ascensão de uma estrela, veloz e brilhante, é seguida inevitavelmente pela sua queda. Elvis Presley trilhou este caminho primeiro, e escreveu as páginas de um livro que muitos outros viriam a copiar — com a sua morte lenta em Las Vegas, onde se arrastou nos últimos anos de vida, uma sombra de si mesmo, afogado em bebida e psicotrópicos, a dar espetáculos para engravatados que pagavam caro para ver ao vivo o Rei, ou pelo menos que restava dele. As últimas impressões são as que costumam ficar e por isso mesmo, a História foi cruel com Elvis. Hoje, infelizmente, não lhe damos o devido crédito.

Quem parece estar condenado a seguir o mesmo destino são os U2. Fãs de Elvis, mas aparentemente alheios aos passos que lhe valeram o seu triste destino, os músicos da banda irlandesa (com Bono e Edge à cabeça) parecem querer trilhar o mesmo caminho de erosão de imagem que o seu ídolo. Nesta última década, projeto após projeto, os U2 mostram estar perdidos, sem ideias novas, e em rápido declínio. E se nada grita mais alto "banda em declínio" que um álbum acústico que se propõe a "re-imaginar" êxitos antigos, como é o caso do iminente "Songs Of Surrender" (que será lançado no próximo mês), o anúncio da última semana oficializou a entrada dos U2 na sua fase "Elvis balofo".

Entre anúncios de refrigerantes e batatas fritas, os U2 anunciaram o seu próximo mega projeto no intervalo do Super Bowl. Com todas as acusações de que a banda irlandesa se tornou numa mera corporate venture, não havia certamente forma menos Rock ‘n’ Roll de fazer este anúncio. E se o veículo para este anúncio já era parolo, o conteúdo do mesmo não foi melhor. Os U2, ou o que resta da banda, vão fazer uma residência em Las Vegas, nos Estados Unidos, para tocar o álbum “Achtung Baby”, de 1991. O que resta da banda, sim, porque o baterista Larry Mullen Jr., a contas com uma lesão nos ombros, não vai estar presente — serão os U1.5, portanto.

Várias questões se levantam aqui. Em primeiro lugar, Larry. Larry Mullen Jr. é “só” um baterista, dir-me-ão; logo é substituível. O problema é que nenhuma outra banda vendeu tão agressivamente o produto de que “somos estes quatro e sem um de nós não há banda”, como os próprios U2. É esse o problema quando se quer desfraldar a bandeira do purismo, o vento vai eventualmente virar-se contra nós. Os U2 já cancelaram espectáculos e adiaram digressões inteiras porque Bono não estava bem; Vegas nem sequer estava anunciado quando Larry deu uma entrevista (no final do ano passado), a revelar as suas frustrações com os U2 que, segundo ele, “deixaram de ser uma democracia e passaram a ser uma leve ditadura” (de Bono e Edge, entenda-se). A entrevista deixa a ideia que pode não haver futuro para Larry nos U2 e esta residência é apenas um test drive para ver se cola. Fazer Vegas sem Larry é feio e deixa um sabor amargo a quem confiou na matriz fixa da banda. E se acham que Larry é apenas mais um baterista, então ouçam os discos com maior atenção. Chamo a atenção a “Zooropa” em particular, onde a bateria é frontal.

Também não deixa de ser irónico que os U2 escolham o seu álbum mais subversivo para tocar em Las Vegas. Longe, muito longe, vão os tempos do rasgo de “Achtung Baby”, “Zooropa”, “Passengers” e, leram bem, “Pop”. Quanto muito, todo este projeto é totalmente anti-"Achtung Baby" e revela uma banda no pólo diametralmente oposto àquela irreverência que vimos na digressão Zoo TV, que passou por Alvalade.

Vegas não é a volta olímpica que os U2 mereciam. Nem é sequer uma volta olímpica que eles precisem. Os U2 já têm rios de dinheiro, tendo amealhado mil milhões de dólares na última década em concertos. Dinheiro, creio, eles têm que chegue. Agora vale a pena preocuparem-se também com o legado que querem deixar às gerações que aí vem e não viram os U2 no seu pico. Seria uma pena que as pessoas se lembrassem dos U2 como a banda que apodreceu em Las Vegas, incompleta, a fazer uma residência sem alma, sem rasgo e sem Rock 'n' Roll. Apenas por pura ganância.

Bono sempre quis ser Elvis, mas duvido que queira terminar na desgraça como ele.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O eclipse de Roger Waters, 50 anos depois de "The Dark Side Of The Moon"

O desalento de um fã dos Pink Floyd para com o auto-proclamado génio criativo da banda.

O tema central do lendário álbum "The Dark Side Of The Moon" dos Pink Floyd são as coisas da vida que nos tornam loucos. A pressa do quotidiano em "On The Run", o dinheiro em "Money", a morte em "The Great Gig In The Sky", o envelhecimento em "Time", ou a guerra em "Us And Them". O disco faz 50 anos no próximo mês e, ironia das ironias, parece que estamos a assistir ao vivo aos efeitos ali descritos no homem que nos avisou do seu perigo — Roger Waters. Ou não fechasse o álbum com "Eclipse".

Estamos a poucas semanas do início da digressão de Waters pela Europa, que começa dia de 17 de Março em Lisboa, no Pavilhão Atlântico (ou Altice Arena, ou lá como se chama agora). Para promover esta légua da This Is Not A Drill Tour — que são, até ver, as últimas datas marcadas da digressão —, Roger deu uma entrevista ao prestigiado jornal alemão “Berliner Zeitung”, onde discute as polémicas que o têm envolvido.

Nos últimos tempos, o músico não tem granjeado simpatias no leste da Europa, devido às suas posições, no mínimo, controversas, sobre a guerra na Ucrânia. Os dois concertos em Cracóvia, na Polónia, foram cancelados depois de a cidade o ter considerado persona non grata, na sequência de uma carta aberta que Roger escreveu à mulher de Zelensky. Na missiva, ele pedia a Olena Zelenska para, pasme-se, parar a carnificina. Agora, com a digressão prestes a arrancar e quando grupos judaicos na Alemanha tentam cancelar os concertos no país, Roger decidiu dar uma entrevista para se explicar. Porém, como tem acontecido nos últimos tempos sempre que tem um microfone à frente, o criativo dos Pink Floyd só piorou as coisas.

A entrevista, que foi traduzida para inglês no site oficial de Waters, lê-se como o monólogo delirante do Coronel Kurtz no epílogo de “Apocalypse Now”. Não sabemos se é a idade, ou a tendência da sua personalidade borderline para desenvolver um certo estado de demência, ou os longos períodos de confinamento que terá passado a ler blogues subversivos e teorias da conspiração —, mas o facto é que Roger flipou. O crónico defensor dos mais oprimidos deu agora lugar a um homem que diz compreender as razões para a invasão da toda poderosa Rússia à Ucrânia. A sua (cada vez menos) velada cobertura às acções de Putin (a quem chamou de gangster no início, mas agora já se arrependeu) é dolorosa demais para quem sempre se reviu na sua música e na sua lírica, e sempre viu nele um herói. Eu, por exemplo.

A conversa é longa e resulta numa leitura penosa. Roger mantém que é contra a guerra, mas põe o ónus da culpa no agredido e não no agressor. A guerra, para ele, começa quando a Ucrânia decide defender a sua soberania e não quando a Rússia invade o território ucraniano. O problema está na resposta de Zelensky à “operação militar especial” russa, termo cunhado pelo próprio Putin, que Roger entende como uma forma de pôr termo ao nazismo na Ucrânia e ao genocídio da população russófona. Parece falar como um porta-voz do regime do Kremlin, portanto. Confesso: é difícil ler a entrevista até ao fim. Preferia as ideias malucas dele quando estas envolviam pôr o David a tocar guitarra no topo de um muro de 6 metros, ou a cantar “To Know You Is To Love You” num dueto com ele. Este é o tipo de loucuras que posso apoiar.

Por falar em ideias malucas, Roger revelou ainda que regravou por completo o álbum “The Dark Side Of The Moon”, eliminando os solos de guitarra e sobrepondo às peças instrumentais como “On The Run” e “The Great Gig In The Sky”, declamações que reflectem o seu "mantra". Roger puxa os galões e assume a criação de "Dark Side" como um projecto pessoal: "deixemo-nos destas tretas de ‘nós’, fui eu que escrevi o disco. Sim, é verdade que estávamos lá quatro, mas o projecto é meu, eu é que o escrevi" (note-se que dos 10 temas de "Dark Side", Roger escreveu a música em quatro, e co-escreveu mais duas canções — só a lírica é integralmente da sua autoria). Waters não mede as suas palavras quando se refere aos seus ex companheiros de banda: "Bem, o Nick nunca fingiu. Mas o David Gilmour e o Rick Wright? Eles não conseguem escrever canções, não têm nada para dizer. Não são artistas". Como disse um dia Nick Mason, baterista dos Pink Floyd, "o problema com o Roger é que ele acredita mesmo que fez tudo. E é muito difícil lidar com alguém que acredita". Curiosamente, o mesmo se aplica às suas novas ideias políticas.

A nova versão de "The Dark Side Of The Moon" surge então, diz Roger, para mostrar o "verdadeiro significado do seu trabalho"; significado esse que, diz ele, é seguir a "voz da razão" — uma voz que ouviu num sonho e surgiu como uma revelação em forma de uma fogueira. Escutar a voz da razão parece boa ideia, se conseguirmos desconsiderar o facto de que muitas das figuras mais problemáticas da história da humanidade disseram exactamente o mesmo. Um “Dark Side” sem guitarras e com a verborreia recente de Waters? Até tenho medo do que aí vem.

Roger referiu-se ainda ao single de beneficência que David Gilmour e Nick Mason gravaram com Andriy Khlyvnyuk, sob a égide dos Pink Floyd — um nome ao qual, segundo o próprio, “esteve associado no passado”. Waters criticou duramente a posição dos membros activos dos Pink Floyd, classificando a acção como um exercício lobotomizado de mero desfraldar da bandeira da Ucrânia. Já ele, não desfralda nem a bandeira russa, nem a ucraniana, como se estes tomassem papéis iguais neste conflito. É este o azimute pelo qual o compasso moral de Roger Waters se alinha agora.

Normalmente, as tiradas de Waters passam sem resposta no espaço público, já que ninguém se atreve a meter-se com ele. Só que desta vez, Roger extravasou os limites da sua chalupice habitual e Polly Samson, esposa de David Gilmour e liricista de "The Division Bell", atirou a matar, com um tweet onde o acusa de (segurem-se, que isto vai doer): "anti-semita até ao tutâno podre", "apologista de Putin, aldrabão, gatuno, hipócrita, evasor fiscal, cantor de playback, misógino, doente de inveja" e "megalomaníaco".

Ui, por onde começar? Talvez pelo fim, que é o mais óbvio — ninguém pode negar que o Roger é megalomaníaco, foi isso que fez dele "o" Roger Waters. Quanto ao resto, haveria muito para dizer, mas vou evitar aprofundar o tema; digo apenas que quem o acompanha há muitos anos, como eu, sabe quem ele é, conhece todos os seus defeitos e muitos deles estão ali descritos. Mas quem os não tem? O que não consigo compreender é a contínua acusação de anti-semitismo de que é alvo, já que atacar o Estado de Israel não é a mesma coisa que atacar o judaísmo, a religião judaica, ou os judeus. Polly e David — que privaram com Roger — talvez saibam mais do que eu, que apenas o vejo a criticar a violência sobre os palestinianos, o que não é o mesmo que ser anti-semita.

O tweet de Polly Samson caiu que nem uma bomba no seio da comunidade de fãs dos Pink Floyd, que viu aqui o último prego no caixão de um possível entendimento entre Roger e David (já nem falo em reunião, que esse barco já zarpou há muito). Para piorar a situação, o próprio David partilhou o tweet da esposa nos sua conta pessoal no Twitter, com o comentário "tudo comprovadamente verdade". Roger não se ficou e fez uma publicação avisando que se está a aconselhar com vista a uma acção legal contra Polly Samson.

E aqui estamos, a poucos dias do quinquagésimo aniversário do seminal "The Dark Side Of The Moon", no eclipse total dos Pink Floyd. Agora não já há dúvidas: estes dois senhores, ambos com idade para terem juízo, vão levar as divergências para a cova. Nem nos anos 80, no auge da batalha jurídica pelo nome dos Pink Floyd, as coisas aqueceram a este ponto. Na época, à boa maneira passivo-agressiva britânica, o pior que foi dito por Roger foi que a versão pós-1987 dos Pink Floyd era "uma falsificação bastante razoável". Disto, passámos a acusações de gatuno e aldrabão. Tudo isto enquanto cantam músicas sobre paz e entendimento. É triste.

Quem mais sofre com isto são os fãs da banda, claro está. Para já, vão ter que levar com a absolutamente obscena reedição "de luxo" que a banda preparou para "The Dark Side Of The Moon", que não é mais que uma versão light da caixa “Immersion” de 2011, com um terço do conteúdo, mas pelo triplo do preço. E a partir daqui, a tendência será para piorar.

Não esperem por isso grandes coisas dos Pink Floyd nos próximos anos. Podem dizer adeus às gravações em vídeo de "The Wall Live At Earl's Court" (que Roger mantém como refém no seu arquivo), à restauração de "Live At Pompeii" e "The Wall", e ao lançamento do álbum "The Wall" em surround. Depois deste cataclismo, que só irá aprofundar o fosso escavado entre David e Roger (lembro que a reedição de "Animals" esteve quatro anos presa a detalhes no livrete), não auguro nada de interessante dos Pink Floyd até que eles nos deixem.

Dito isto, lá estarei em Lisboa, na data de estreia da digressão europeia de Roger Waters. Vou viajar de Londres, onde vivo, de propósito para o efeito. Tenho os bilhetes comprados desde o primeiro dia — a minha ligação à música é demasiado forte para ser abalada pela verborreia de um homem que, claramente, não está bem. Neste caso, como em muitos outros, é preciso reforçar a fronteira entre a arte e o artista. Confiem sempre na arte, nunca no artista. "The Dark Side Of The Moon" é imutável, não engana hoje, nem há 50 anos, nem daqui a mais 50. Já o artista, esse, nunca sabemos quando vai cumprir a profecia da sua própria arte e tornar-se num louco admirador de criminosos de guerra. Parte o coração ver o eclipse de Roger Waters.